Outro dia, na fila do supermercado, vi uma cena que me deixou encucado. Uma menina, que não devia ter mais de oito ou nove anos, estava mostrando um vídeo no celular para a mãe. Não era um desenho, nem uma daquelas brincadeiras de criança que a gente espera. Era um tutorial. Um tutorial de skincare, com rotina de 10 passos, sérum, hidratante e até creme para a área dos olhos. A menina falava com a desenvoltura de uma digital influencer veterana, usando termos como “ácido hialurônico” e “efeito lifting”.
Eu fiquei ali, com meu pacote de pão de forma na mão, e me senti transportado para outro planeta. Na idade dela, minha maior preocupação dermatológica era não esquecer de passar Caladryl na picada de mosquito.
Essa cena não é um caso isolado. É um retrato, um pequeno flash de um fenômeno que vem ganhando nome e corpo: a “adultização” da infância. E, como era de se esperar, essa aceleração do tempo das nossas crianças reacendeu uma fogueira que nunca se apaga de verdade: a necessidade de regular as redes sociais. Só que, como sempre acontece no nosso país, entre a urgência do problema e a vontade política, existe um abismo do tamanho de um feed infinito.
O Que Raios é Essa Tal de “Adultização”?
O nome parece complicado, mas a ideia é bem simples de sacar. É o processo de empurrar comportamentos, preocupações, estéticas e responsabilidades de adultos para cima das crianças, antes que elas tenham maturidade emocional e psicológica para lidar com tudo isso.
E as redes sociais, convenhamos, são o palco perfeito para esse show de horrores. O que antes era um processo que acontecia de forma mais lenta, influenciado pela TV ou pelas revistas, agora acontece na velocidade da luz, 24 horas por dia, direto na palma da mão dos pequenos.
Pensa comigo no que uma criança vê hoje no TikTok ou no Instagram:
- A estética da perfeição: Meninas e meninos aprendendo a fazer poses, a usar filtros que mudam o formato do rosto, a se preocupar com a aparência de uma forma que a nossa geração só foi conhecer (se é que conheceu) na adolescência tardia.
- O consumo como identidade: A lógica do “recebidos”, do unboxing. A criança não apenas brinca com o brinquedo; ela performa o recebimento do brinquedo. A alegria precisa ser documentada, postada, validada por likes e comentários.
- A linguagem e os temas: Eles são expostos a discussões, danças e “trends” com conotações e contextos que são 100% do mundo adulto. Eles reproduzem o que veem, muitas vezes sem entender o significado daquilo.
Não é sobre proibir a criança de ter acesso à tecnologia. Seria uma tolice, uma luta perdida. A questão é a falta de fronteiras. A infância virou um nicho de mercado, um “público-alvo”. E o resultado é uma geração de “pequenos gigantes”: crianças que falam como adultos, se vestem como mini-adultos e carregam ansiedades de gente grande.
A Batata Quente da Regulação: Por que Ninguém Resolve?
Toda vez que uma nova polêmica sobre os efeitos das redes nas crianças explode, a conversa sobre regulação volta com tudo. E, honestamente, é o caminho mais lógico. Não dá pra esperar que as Big Techs, cujo modelo de negócio é baseado em manter nossos olhos (e os dos nossos filhos) grudados na tela o maior tempo possível, se autorregulem por pura bondade.
O problema é que, quando essa discussão chega no Congresso, ela empaca. Vira um cabo de guerra ideológico que não leva a lugar nenhum.
De um lado, você tem o grupo que grita “liberdade de expressão!”. Para eles, qualquer tentativa de regular o que pode ou não ser postado é censura. É o Estado querendo ser uma babá gigante, controlando o que a gente vê. Eles argumentam que a responsabilidade é dos pais, que devem educar e monitorar seus filhos.
Do outro lado, está a turma que defende a proteção da criança e do adolescente como prioridade absoluta. Eles argumentam que “liberdade de expressão” não pode ser um escudo para proteger práticas que comprovadamente causam danos psicológicos, exploram a imagem infantil e viciam os pequenos em algoritmos predatórios. Eles defendem que os pais, sozinhos, não têm como lutar contra um exército de engenheiros e psicólogos contratados para criar plataformas viciantes.
E o que acontece? Nada. O clima fica desfavorável. Um projeto de lei é proposto, mas é taxado de “mordaça”. Uma audiência pública é convocada, mas vira um palanque político. E, enquanto os ternos e gravatas discutem em Brasília, a infância de uma geração inteira está sendo moldada e, em muitos casos, leiloada em troca de engajamento.
Jogando a Culpa: Um Esporte Nacional
É muito fácil apontar o dedo. “A culpa é das plataformas!”. “A culpa é dos políticos!”. “A culpa é dos pais!”. E, quer saber? Talvez todo mundo tenha um pedaço de razão.
Lembro de uma conversa com um amigo, pai de uma menina de 10 anos. Ele estava reclamando que a filha só queria saber de gravar “dancinhas”. Eu, na minha ingenuidade, perguntei: “Mas quem deu o celular pra ela? Quem criou a conta na rede social?”. Ele ficou sem graça. “Ah, mas todas as amiguinhas dela têm… Se eu não desse, ela ia ficar excluída”.
Essa é a armadilha. A gente está preso num sistema. Os pais se sentem pressionados a ceder para não isolar os filhos. As crianças, por sua vez, sentem a pressão de participar, de pertencer àquele universo. E as plataformas lucram com essa dinâmica.
Não estou isentando a responsabilidade de ninguém, muito menos a das corporações bilionárias. Mas a gente precisa ser honesto e admitir que a cultura da exposição, da performance, da busca por validação, é algo que nós, adultos, criamos e alimentamos todos os dias. As crianças são apenas o sintoma mais visível e vulnerável de uma doença que é de todos nós.
No fim das contas, essa discussão sobre a “adultização” das crianças é um espelho. Um espelho que reflete as nossas próprias prioridades como sociedade. O que a gente valoriza de verdade? A infância como um tempo de brincar, de errar, de ser desajeitado e livre de julgamentos? Ou a infância como um campo de treinamento para a vida adulta, onde cada passo já precisa ser otimizado para o sucesso e para a performance?
Enquanto a gente não responder a essa pergunta, de forma honesta, lá no fundo da alma, o Congresso vai continuar patinando, as plataformas vão continuar lucrando e nossas crianças vão continuar fazendo tutorial de skincare na fila do supermercado. E a gente vai seguir se perguntando onde foi que a gente errou. E a resposta, talvez, esteja bem aí, na nossa mão, piscando na tela de um celular.